quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Com brinquedos e figuras, a dentista Adriana Zink consegue driblar o difícil comportamento dos autistas

É brincando que se atende!
  
Por Marina Miranda Foto Douglas Daniel


Em um consultório simples no bairro Tucuruvi, zona norte de São Paulo, o dia mal começou e a dentista Adriana Gledys Zink se prepara para mais uma jornada de trabalho. No jaleco, o primeiro indício de que ela não é uma profissional comum. O orgulho pelo que faz está marcado em letras garrafais na cor azul em meio ao branco da roupa: Dra. Adriana - Pacientes Especiais. Seu primeiro paciente chega fazendo barulho. Dá para ouvir sua agitação na sala de espera, a alguns metros do consultório. É Lucas Ferragut Melo, 17 anos, que se consultará pela segunda vez. De repente, o jovem moreno, alto, com cabelo curtinho e semblante bem-humorado entra de supetão na sala. Seu olhar percorre o consultório à procura de algo. Verificando cada detalhe, ele segue em direção à cadeira de dentista, separada do restante do consultório por um biombo. Depois, retorna para o espaço onde Adriana mantém um computador (com fotos de pacientes), uma mesa e cadeiras, percebe o tapete colorido no chão e se anima com uma boneca Barbie loira. A empolgação é tanta que ele a pega no colo e, em vez de se direcionar para a cadeira e iniciar o tratamento, sai da sala com ela nos braços dizendo: "Vou levá-la". Rapidamente, Adriana o chama de volta e se levanta para buscá-lo. Antes, porém, me olha com um sorriso de satisfação genuíno: "Você viu que ele veio? Tinha certeza que ia procurar a boneca que ficou esperando por ele na consulta anterior".

E, assim, começa, definitivamente, mais um dia de trabalho para a dentista que se especializou em atender autistas. Para tanto, teve de desenvolver e adaptar técnicas. Com Lucas, por exemplo, ela aproveitou a predileção do garoto por bonecas para motivá-lo a voltar à próxima consulta: a boneca o esperaria para que "os dois" dessem continuidade ao tratamento. E funcionou. Lucas só largou a Barbie, depois que terminou a consulta, para colocá-la numa bancada onde ela o aguardará até a próxima visita. Adriana estava ansiosa para saber se ele procuraria o brinquedo e, ao final, o seu sorriso comprovou não só que houve o resultado esperado, mas que cada progresso de seus pacientes é também uma vitória para ela.

Formada em odontologia há 16 anos pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Adriana tem especialização em Pacientes com Necessidades Especiais, pela Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas (APCD). Atualmente, é professora na APCD e voluntária no Projeto Social da Escola de Samba Unidos de Vila Maria, onde atende pacientes com deficiência todas as quartas-feiras gratuitamente. Ela também ministra cursos na área de condicionamento lúdico para o tratamento odontológico e preventivo; é membro do Movimento Orgulho Autista Brasil e colaboradora da Revista Autismo. Há sete anos trabalha com pacientes autistas, dos mais tranquilos aos de comportamento difícil, que não falam ou costumam bater.

Que motivos a levaram para tratar de autistas?
Foi tudo meio por acaso. Formei-me em 1994 e resolvi fazer a especialização em Pacientes com Necessidades Especiais, pela APCD, em 2003. Desde então, comecei a trabalhar aqui no consultório. Entre os pacientes especiais, o mais difícil é o autista, porque tem a questão do comportamento. Nesses sete anos foram os que mais apareceram. Foi aí que comecei a ver que precisava saber mais para atendê-los. Dentro do universo de pacientes com deficiência sabe-se pouco sobre autistas.

Como é o primeiro contato com o autista?
A primeira consulta é com os pais, e leva de uma a duas horas. Eu mostro tudo para eles, o consultório, as técnicas que uso, falo do PECS e do Son-Rise (método que visa usar as preferências e os gostos dos autistas como recurso de comunicação e aprendizagem). Eles também respondem a um questionário, no qual pego detalhes da criança, tanto da parte odontológica como pessoal: o que ela gosta, o que não gosta, se há comunicação, se fala, se fica sentado para comer, etc. Aproveito para dar dicas que ajudem no dia a dia da família e aqui no consultório. É uma troca de experiência, eles passam o problema e aqui tento adaptar para mim.

Qual método utiliza para se aproximar do paciente no primeiro contato?
É muito individual. Não tem um padrão. Por exemplo, veio um paciente que mora em Israel e está de férias aqui. A mãe me contou que o que o filho mais gosta são canudos e bolhas de sabão e que não gosta de barulho, nem de roupa branca. Então, eu o atendi com o jaleco azul. Eu anoto cada detalhe da consulta na ficha do paciente. No caso do Isaac, na primeira sessão, ele se sentou na calça da vovó (uma calça com enchimento usada por fisioterapeutas), brincou no cavalinho e com os canudos que tanto ama e me deixou passar o flúor nele no chão mesmo. Já na segunda sessão, passei a calça da vovó para a cadeira e ele se sentou. Neste paciente, uso os canudos como forma de troca. Cada vez que ele faz algo correto eu faço festa, jogo bolhas de sabão e dou os canudos.

Quando atendo crianças que já utilizam o Son-Rise, a consulta se torna mais fácil, pois elas já estão acostumadas. Agora quando não há o costume, se elas não conhecem o método, passo a utilizar e a mãe acaba usando em casa também. Eu ob- servo bastante para ver o que é melhor de se aplicar. Claro, que alguns precisam usar as faixas de contenção, mas tem de saber fazer. Se você usa as faixas e a criança não mostra resistência, não sente dor, da próxima vez que precisar fazer a contenção será mais tranquilo. Não adianta você usar a faixa e ela sofrer porque não vai querer usar da próxima vez.

Quais são as resistências mais comuns e o que fazer?
Normalmente, o autista não gosta de barulho e roupa branca, mas é muito pessoal. Alguns não gostam de pessoas novas. Essa questão do barulho é complicada porque muitos instrumentos que utilizo são barulhentos, então, condiciono a mãe a adaptar o filho ao som forte - secar o cabelo dele em casa é uma boa saída, ou colocá-lo na cozinha quando for usar o liquidificador. Essas são algumas ações simples para acostumar os filhos ao ruído.

Há crianças que, às vezes, não querem passar da porta, porque tem o novo, não sabem o que vai ser feito e algumas já sofreram, então resistem. Aí entra o Son-Rise: mostro os brinquedinhos, e tento conquistá-las. Em algumas ocasiões, aquelas que sofreram, ao ver a cadeira, já se jogam no chão, por isso o tapete exatamente ali (perto da porta). Quando isso acontece, tiro o foco da cadeira e começo a trabalhar no chão.
 
Às vezes, o trauma é dos pais. Tenho uma paciente que se chama Roberta, 37 anos, cega, e que nunca tinha ido ao dentista, ou foi quando era muito pequena. Essa jovem mordeu a bochecha da fonoaudióloga em uma sessão e a mãe ficou traumatizada. Há quatro anos trata a filha comigo. Nas primeiras sessões foi um estresse enorme, precisei contê-la com faixas, não teve jeito. Por ela ser cega, não havia contato visual nenhum, só o tato. Com o tempo percebi que a música a deixava calma. Quando eu cantava, ela se acalmava, então comprei um CD de música clássica e, quando a Roberta vem, ponho o CD e fico quietinha, não falo nada e ela fica atenta à música. Essa paciente vem a cada dois meses para o dia da faxina - como chamo -, me toca, me cheira e com a música me deixa tratá-la. Quando começa com os movimentos bruscos, demonstra inquietude, eu encerro a consulta.

Qual foi o caso que mais a emocionou?
Teve um caso de um menino com comportamento autístico. Ele chegou aqui em 2008, na época havia a epidemia de gripe suína e eu estava muito resfriada, por isso fiquei em casa. Ele chegou com o rosto inchado, estava com uma cárie enorme, chorando e chegou batendo, mordendo. O meu marido (Marcelo Diniz de Pinho) é bucomaxilofacial e não atende pessoas com deficiência, mas sabe o que faço. Então, o Marcelo ligou para mim e eu falei: "Você sabe como fazer, tenta". Do jeito que o garoto estava não teve outro jeito a não ser segurá-lo para fazer a intervenção. Na outra sessão, o paciente veio todo feliz porque a dor tinha acabado. Há uns dois meses precisou tirar um dentinho de leite. Quando ele viu a figura da anestesia no PECs, me deu um soco. Nessa hora, é necessário manter a calma e explicar que não é assim que se faz. O paciente não fala, mas percebi que queria que o Marcelo o anestesiasse porque foi ele quem o atendeu pela primeira vez. Então, o levei para o Marcelo, que fez a anestesia e eu tirei o dente. Isso foi muito legal porque prova como é importante a confiança.

Teve algum caso que sentiu que era perdido e por quê?
Caso perdido não tem. Eu também nunca desisti de um, o que acontece são pais que querem tratamento imediato e preferem a anestesia geral para terminar logo. Mas tem casos mais demorados. Tem um garoto, de 12 anos, que está comigo há três meses e ainda não consegui levá-lo para a cadeira. A mãe dele é maravilhosa, mas tem muito medo que a gente o faça sofrer e isso, às vezes, dificulta porque eu sei como é. Tenho dois filhos, você tem de confiar no profissional. Então, foram muitas sessões para ela perceber que eu não ia fazer mal ao filho. Uma vez uma mãe me contou que tinha levado a filha a uma consulta com uma gastroenterologista e a médica confidenciou: "Eu nunca atendi isso!". Como que uma mãe pode escutar algo assim se está procurando um tratamento? O que falta não é só formação, falta um pouquinho de sensibilidade, de consciência e de amor no que faz. Se você trata com amor, o retorno é enorme.

APCD - Rua Voluntários da Pátria, 547 - Santana - São Paulo 
Escola de Samba Unidos de Vila Maria - Rua Cabo João Monteiro da Rocha, 448

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